O Blog Cantos da Cidade elaborado e contextualizado por um grupo de alunos da UCSAL (Universidade Católica do Salvador) traz informações e postagens relacionadas a lazer e cultura na cidade soteropolitana de Salvador-Bahia, dando dicas e debatendo varias questões contidas em Cultura&Lazer, com textos científicos sobre o assunto partindo de pressupostos teóricos de vários autores sobre o tema. A palavra cultura abrange várias formas artísticas, mas define tudo aquilo que é produzido a partir da inteligência humana. Ela está presente desde os povos primitivos em seus costumes, sistemas, leis, religião, em suas artes, ciências, crenças, mitos, valores morais e em tudo aquilo que compromete o sentir, o pensar e o agir das pessoas. Sobre esses aspectos humanos e origens culturais presente em nossa sociedade que discutiremos de forma abrangente a cultura&Lazer dentro da nossa comunidade de informação que é o Canto da Cidade.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A Importância Histórica e Cultural da Bahia para o Brasil.

Olho da História No. 1

Documentário Bahia, la Métisse

Entrevista com Dr. Ubiratan Castro ,da UFBA, a maior autoridade em sincretismo religioso afro-brasileiro no país.




OC-H** - Como surgiu a idéia de se produzir o documentário Bahia, la Métisse1 ? Como se deu seu processo de produção? E, por que o título Bahia, la Métisse (Bahia, a Mestiça)?



UC - O vídeo Bahia, la Métisse é uma resposta ao grande projeto político-cultural espanhol, vinculado aos 500 anos da descoberta da América.


Naquele momento, eu fazia doutorado em Paris e fui contactado por cineastas e pesquisadores a respeito desse projeto. Na verdade, ele visava uma discussão dos 500 anos dentro de uma perspectiva bilateral, ou seja, não apenas com o olho da conquista, da expansão européia, mas também incorporando a visão dos povos latino-americanos nesse processo; daqueles que receberam a rompa invasora e que são o resultado do processo contraditório, conflituoso e traumático da colonização.

Nesse amplo programa, concebeu-se uma série de atividades, dentre elas, um projeto coordenado pela cineasta, socióloga e jornalista Anne Remiche-Martynow — com grande experiência na rádio e televisão belga-francofone RTBF — e por Graciela Schnaier Madanes, arquiteta e professora do IHEAL (Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine - Université de Paris III - Sorbonne nouvelle). O projeto era composto por três linhas: a produção de uma série de vídeos para televisão que demonstrasse uma visão bilateral e bastante ampla da descoberta; a publicação de um livro que pudesse reunir análises dentro da perspectiva da bilateralidade; e a realização de um seminário com a participação de europeus e americanos que confrontariam suas idéias a respeito do descobrimento. Não participei da elaboração do projeto. Fui convidado a participar do projeto-vídeo, por Anne Remiche.

Como a idéia era fazer que os vídeos representassem essa visão múltipla da América Latina, adotou-se uma espécie de tipologia da América Latina, muito influenciada pela visão de Darcy Ribeiro.

Um primeiro modelo de categorização seria o de povos transplantados, resultado do processo de emigração maciça européia para a América, que, no caso da Argentina, com a imigração de calabreses e galegos, foi espetacular. A Argentina, mesmo depois da guerra das Malvinas, acreditava ser a "Europa das Américas".

Outro modelo seria o de civilizações resistentes, a exemplo dos Incas no Peru — povo representativo de um mundo antigo, indígena, que se fechou na pobreza, ficou no alto da montanha e não se desenvolveu.

Um terceiro modelo, seria o de uma mestiçagem pelo alto, como nos moldes mexicanos: da mistura do povo asteca com o conquistador , dos dominadores locais com os dominadores recém-chegados.

E, como quarto modelo, teríamos o exemplo brasileiro da mistura bem pragmática e bem povão, que se poderia chamar assim, a mistura Brasil. E dentro do Brasil, a Bahia, a mistura do negro com o branco, gerando a cultura afro-brasileira. O processo de mistura no Brasil foi tal que você não pode dizer que a Bahia é portuguesa, nem que ela é africana, ou que se trata de uma Europa recriada. O Brasil é absolutamente singular e inovador do ponto de vista da concepção de povo, de uma cultura nova; aquilo que Darcy Ribeiro chama de "povo novo".

O objetivo inicial do projeto era, dessa forma, fazer quatro vídeos: um sobre a Argentina, um sobre o Peru, um sobre o México e um sobre Brasil e, em especial, sobre a Bahia. O projeto foi encaminhado aos órgãos culturais da comunidade européia, porém, devido às dificuldades de financiamento, foi necessário reduzi-lo para dois vídeos. Na hora da escolha, elegeu-se exatamente o mundo índio resistente — andino — e o novo mundo afro-brasileiro, que, nem mesmo em termos fenotípicos, assemelhava-se com a Europa, um mundo recriado na própria construção de colonização. Ficaram, assim, os vídeos sobre a utopia andina, feito no Peru e sobre o "povo novo", feito na Bahia, "a Mestiça".

Quanto ao título, é importante salientar que o termo mestiçagem, no Brasil, tem conotação diversa da palavra na Europa e nas Américas. Inclusive, isso foi uma coisa sobre que eu argumentei. Aqui, o termo tem uma conotação muito menos prestigiosa do que tem, por exemplo, no mundo hispano-americano, onde ser mestiço é representar alguma coisa de peso: "mestizo, criolo, é aquele que é da terra", é nacional, em oposição ao peninsular europeu. Há nesta noção todo um nacionalismo, um patriotismo hispano-americano. No Brasil, por conta de algumas discussões travadas dentro do movimento negro, o termo mestiço tem sido visto como sinal de enfraquecimento, como é, ou era, na gíria do Pelourinho: "mulato é igual a mestiço e é tinta fraca". O mestiço deve-se dizer negro. O prestigioso é ressaltar a negritude e não a mestiçagem. Aqui, faço uma crítica a um certo "stalinismo étnico" e, como mulato consciente, resolvi também dar um voto e colocar mestiço no título do vídeo. E por que não? O povo que se está mostrando, é um povo novo mesmo, que resulta de múltiplas interferências e aportes, que é multi-cultural.

É nessa condição de visão multicultural, que o vídeo procura mostrar depoimentos em que se fala em pé de igualdade, como diferente, como povo que não é resultado de uma simples implantação cultural, mas que soube se fazer ao longo de 500 anos. De maneira específica, que soube refutar e também soube aproveitar o que havia para ser aproveitado. Enfim, uma noção, não patriótica, mas nacionalista de um povo, que é esse "povo novo", baiano, em toda sua confusão epistemológica, em toda sua indefinição, enquanto ele se coloca como diferente, como aquele que encantou até Gilberto Freyre: uma civilização viva, muito esportiva e muito afetiva nos trópicos. Nós somos uma grande nação nos trópicos e não somos a cara da Europa. Temos a nossa própria cara, nossa própria alma, gesto, tudo. Este foi o espírito do vídeo.

Dessa forma, o título, numa versão brasileira deveria ser diferente, algo que desse conta disso aí, da Bahia de várias caras. Enfim, é uma questão apenas de terminologia, de denominação. Você sabe que, nas ciências sociais, na história, na política, em tudo, as palavras, repentinamente, assumem conotações muito pesadas e, às vezes, é só um jogo de cintura, no qual você, mudando a palavra, desbloqueia tudo.

Mudar o termo mestiço para multi-étnico ou negro-mestiço muda, mas, referindo-se a essa noção de multiplicidade, de autonomia, de diferença em relação ao projeto cultural europeu. Nós somos o que nós construímos, apesar da descoberta, da conquista e da ocupação ibérica.

OC-H - Como se estabelece a relação passado e presente no documentário?

UC - Ela está evidenciada o tempo inteiro no próprio recorte do objeto. Nada mais presente do que a decisão de se fazer um projeto, de defendê-lo, de obter financiamento, redefini-lo e recortá-lo. É uma decisão a partir de uma realidade política e cultural presente, de um problema presente. Aí está todo o nosso presentismo: buscar o passado, numa operação de remexer e refazer uma memória coletiva com a função de operar melhor o presente.

Se você me pergunta a relação presente-passado em termos técnicos, posso dizer que não houve grande rigor, buscamos mostrar a sobrevivência do passado no presente, mostrar, por exemplo, a Bahia africana, a diáspora negra, o tráfico de escravos e sua violência. Não o fizemos apenas através do discurso. Há mesmo uma parte formalmente histórica. O vídeo foi produzido por uma equipe que veio aqui, pesquisou imagens e documentos. A gente tinha que fazer isso para orientar o espectador; tínhamos que dar algumas balizas históricas para o entendimento do processo a um público alvo, que era o europeu. O vídeo tem pequenos trechos narrativos para fixação de como os africanos chegaram no Brasil, que tipo de sociedade encontraram, como operou o tráfico de escravos e como os africanos foram utilizados.

Buscamos, o tempo todo, mostrar a presença africana, a afro-baianidade, enfim, esse processo de intercomunicação cultural da Bahia. O vídeo começa com uma exibição do Olodum no Pelourinho e, ao mesmo tempo, com um discurso cruzado, tipo de aula, onde faço pequenas exposições sobre a história do Brasil, entremeadas de imagens atuais.

Quando falo, por exemplo, sobre a questão do açúcar pós-escravidão, a equipe fez tomadas na usina Aliança. Os trabalhadores estão lá, em condições bastante semelhantes às de antes.

Nas questões de religiosidade, procurou-se a sobrevivência da procissão, do terreiro, da casa de culto. O passado para nós está aí, indissociado do presente. É representado o tempo inteiro, sendo engolido pelo presente. O corte presente-passado não foi feito da maneira escolar tradicional. Buscou-se um passado vívido, um passado que está atuando e está jogando enquanto memória social, enquanto referência cultural e política e enquanto definição de identidade de um povo.

Não é um vídeo sobre a escravidão, nem sobre a colonização, tampouco sobre a descoberta. É um vídeo sobre a Bahia de hoje, o povo baiano de hoje, vivendo o processo de criação cultural de um povo novo.

OC-H - Como você relaciona a concepção multi-cultural do documentário e a concepção política dos movimentos negros na Bahia?

UC - Eu me reservaria o direito de não tecer comentários sobre o movimento negro. Inclusive, na época das filmagens do documentário, eu estava no exterior e as tomadas feitas comigo foram filmadas na Bélgica. A equipe belga que fez o vídeo é que veio aqui fazer as tomadas com minha orientação e recomendação. Falei com pessoas, escrevi, discuti o roteiro mas, a rigor, o contato com as entidades culturais afro-brasileiras foi feito pela equipe. Eu não estava aqui para discutir com elas. Considero que há até uma participação expressiva dos meninos do Olodum. Inclusive, João Jorge, seu presidente, dá uma entrevista. No mais, eu acho que o vídeo terminou sendo feito com as pessoas que não estavam comprometidas com essa representatividade e, a meu ver, expressou de maneira bastante espontânea a manifestação popular, mais do que a manifestação de uma liderança política negra baiana.

E o vídeo foi feito sob esse enfoque e, do ponto de vista europeu, foi, até hoje, um dos melhores realizados em toda a Europa. Foi distribuído por toda Europa, para todas as redes de TV educativas e comerciais e foi exibido em todos os países europeus. Portanto, é um vídeo muito conhecido, de ampla divulgação. Os ecos são os melhores: as pessoas que o assistiram lembram e perguntam. O vídeo se colocou distante do clichê do heroísmo, do clichê do sofrimento. Ressaltou o lado ativo, alegre e criativo da Bahia simples, cotidiana, profundamente baiana, não européia, crítica, positiva, bonita. Inclusive, na época, foi sintomático termos encerrado o vídeo com a música do Araketu, que estava sendo terrivelmente malhado, porque, naquele ano, tinha introduzido instrumentos eletrônicos — o sax, o baixo e a guitarra, por exemplo — na banda, interrompendo o tradicionalismo instrumental dos blocos afros. Logo depois, o Araketu foi seguido por outros blocos afros. Assim, o vídeo adquiriu mais este valor histórico, porque registra o momento da entrada dos instrumentos eletrônicos nos blocos afros no Carnaval.

Enfim, não me parece haver uma oposição, uma rejeição frontal por parte do movimento negro a uma evidência antropológica como a mestiçagem na Bahia. Já ouvi alguns militantes se referirem à população baiana como uma população negro-mestiça. Mas, é evidente que, no esforço de construção de uma identidade afro-brasileira — o que em si, já é um conceito mestiço —, nota-se uma ênfase do movimento negro na matriz africana, como componente predominante, quase exclusivamente negro na mestiçagem, o que pode ser politicamente correto, mas cientificamente incorreto.

OC-H - Você não acha que o povo negro é representado de forma um pouco simplória, sob um olhar europeu, por exemplo, nas imagens dos meninos que tocam tambor no Olodum, mas não sabem por que o fazem?

UC - Onde estaria a visão européia disso aí? As pessoas, do ponto de vista do cotidiano, estão aí, fazendo isso, demonstrando alegria em fazer isso, demonstrando seu apego a esse tipo de prática, esse apego ao trabalho cultural. E é aí que está a diferença, não é necessário ter um discurso elaborado e decorado. Em sã consciência, eu te pergunto: a grande maioria da moçada que está dançando reggae, que está enfrentando a polícia, que está indo aos candomblés, precisa fazer um discurso intelectual complicado?

Ela não precisa ter definições do que ela gosta ou não gosta, do que ela quer ou não quer. Não precisa de uma teoria para explicar o Carnaval, ela simplesmente faz carnaval porque gosta. Ela não precisa ter uma teoria social do Olodum. O menino que está lá não tem que ter introjetado na cabeça um discurso político ideológico de que é melhor estar no Olodum do que na rua. Na verdade, ele está lá porque ele aprendeu a fazer uma coisa que gosta, que se sente bem fazendo. Ele está entre as pessoas do grupo dele, participa de toda a coisa da alegria, de estar junto. Naquele grupo, ali dentro mesmo, na escola, eles aprendem a batucar, dali mesmo eles saem para brincar, vão jogar baba, tomam banho, voltam, quer dizer, isso é a vida de adolescente mesmo, ele está ali porque ele gosta , e não tem necessidade de fazer um discurso sobre a negritude baiana, nem sobre a resistência. Isso é um olhar europeu? O não europeu é fazer um discurso apologético da negritude?

Inclusive, acho importante que se compreenda o vídeo sob o aspecto de documento histórico e sobre a importância de registrar esse tipo de percepção. Porque o que se transmite como história formal, escrita e elaborada é o discurso elaborado das elites, das lideranças, que fazem um discurso fechado e auto-referente da negritude.

Na hora em que você entrevista um componente do grupo Olodum e ouve: "antigamente, ninguém queria ser negro, agora está na moda, todo mundo querendo ser negro", você ouve uma verdade, há uma moda da negritude, que dá margem a todo tipo de oportunismo, por parte de uma negritude artificial que quer se autopromover, enquanto que muitos daqueles que sempre foram negros, que mantiveram seus traços culturais, sua tradição, não têm acesso à mídia para falar de si próprios.

É necessário se tomar o filme como parte de um projeto cultural. Afinal, essa é uma das características do cinema-história. Mesmo que o vídeo ou o filme seja uma peça constituída intelectualmente, é um documento histórico. No momento em que ele é realizado, ele capta, flagra e fixa um momento de vida de um povo, de um grupo e pode-se fazer a leitura de toda uma época utilizando os filmes. Esqueça esse projeto de descobrimento, esqueça essa questão de Brasil-Europa; se você olhar aquele vídeo como documento, você vai encontrar várias coisas.

É preciso, às vezes, ter um pouco de distância dos que instauram e controlam o discurso normativo — no sentido foucaultiano — e ver o outro lado, o das pessoas nas ruas, do menino do cafezinho. Como documento, esse é o lado mais importante do vídeo.

OC-H- Qual a importância que você atribui ao historiador que produz vídeos históricos para o resgate da identidade e cidadania do povo negro?

UC- Em princípio, não é tanto uma questão do historiador, como saber específico sobre o passado de um povo, mas é principalmente uma questão de identidade básica de esquerda. O que a gente quer com isso aí?

Em primeiro lugar, trata-se de enfrentar o mundo da produção cultural, da formação de opinião com uma postura de esquerda. A visão europocêntrica do descobrimento, por exemplo, é um visão extremamente direitista. Era possível discutir a América apenas como um mundo "civilizado" pelos europeus. A expansão capitalista, a globalização dos mercados capitalistas, ocorre a partir de um epicentro — a Europa —, que captura, subordina, destrói, coloca dentro do seu fetiche tudo o que há de mais rico no mundo. Então, como é que se reage a isso? É dizendo que existe o diferente, que existe o novo do outro lado do mundo.

Também, é preciso romper com a visão extremamente etnicista do intelectual. O que está em jogo é recuperar uma categoria: povo brasileiro. Aqui, sim, o processo de criação, de mudança, de mistura, de reprodução é um grande desafio.

Hoje, é necessário tentar não enquadrar esse povo em categorias extremamente estanques, separadas, localizadas, particulares. Essa é uma tendência do particularismo, que, por exemplo, tornaria impossível fazer um filme sobre a Bahia, pegando aspectos múltiplos e, até mesmo, falar em mestiçagem.

Para muitos, esse vídeo seria detestável. Não sei como será, quando for traduzido para o português. Uma grande questão que se coloca é buscar não uma Bahia mais nagô, mais portuguesa, mais banto, mais angola, mais jeje, e sim uma Bahia baiana. Eu acho que esse tipo de utopia de esquerda deve ser retomado. É preciso entender o povo na sua verdade antropológica, cultural, social, ideológica e política e não impor a ele os modelos mais convenientes das minorias políticas, étnico-culturais, enfim, as minorias formadoras de opiniões. Um intelectual de esquerda deve estar referenciado por uma noção de mudança, criação e transformação social, deve buscar aquilo que está mudando, encontrar as soluções e alternativas e não apenas pinçar as referências, buscar raízes, identidade. Esta não é, portanto, apenas uma tarefa específica de historiadores.

OC-H - Como você analisa as idéias de sincretismo e resistência apresentadas no documentário? Algumas formas de resistência são destacadas no documentário, a exemplo das fugas e quilombos, que são temas recorrentes no vídeo. E como você relaciona essas formas de resistência aos paradigmas de Palmares e Zumbi, que hoje comemoram seus 300 anos?

UC - Numa das entrevistas do vídeo, dada por um irmão meu, médico e religioso, ele trata claramente uma coisa que não é o sincretismo. Ele fala da tolerância religiosa, existente, inclusive, na Bahia de hoje, ou seja, de como o povo baiano, esse povo misturado, utiliza simultaneamente várias entradas religiosas. Como ele mesmo diz:

Minha cabeça é dividida: quando ela quer colocar Senhor do Bonfim, é Senhor do Bonfim mesmo, quando ela quer Oxalá, é uma outra coisa. Não se mistura Oxalá com Senhor do Bonfim. Da mesma forma, quando eu estou na medicina, estou trabalhando com o saber científico e experimental, e quando estou no axé, lá eu sou religioso, eu sou um fiel. Não sou um médico do candomblé e nem um religioso afro-brasileira da medicina.

Então, não é sincretismo, mas uma entrada múltipla, como ele mesmo diz: "o brasileiro tem registros na cabeça, diferenciadamente do europeu, que é unificado, restrito, que tem um código só". Ela permite que se tenha vários registros, que se entre e saia de vários espaços religiosos. Você se depara com isso em toda a história do Brasil. E esse é também um movimento de resistência. Imagino que as pessoas, ao mesmo tempo em que estavam na Rosário do Pretos, estavam no culto afro-brasileiro e, se possível, estariam nas mesquitas com os Malês, sem se tornarem esquizofrênicos. Para o baiano, lugar de trabalho é o terreiro, e onde se reza missa é na igreja. Ninguém vai dançar na nave, no adro e no altar-mor, ninguém vai rezar missa no terreiro. Não é um sincretismo, não é uma fusão. É a manutenção de registros diferenciados, como patrimônio cultural, não como uma degeneração, nem como uma patologia, mas como arma que permite a sobrevivência do baiano num mundo complexo.

Os europeus quando vêm para cá, ficam loucos para aprender a ter várias entradas, aprender a ser múltiplos, versáteis, ter referenciais culturais mais amplos e que são usados em função da necessidade de criação cultural.

Então, nesse ponto de vista, o baiano não é sincrético, mas incorpora a multiplicidade cultural. Cada baiano contém em si o múltiplo, cada um contém em si vários. Isso é dialético: ao mesmo tempo, você tem dentro de si o africano, o índio, o europeu, o chinês, o asiático. Isto é a herança de um povo novo, de um povo que se constituiu, realmente, a partir de várias contribuições culturais num processo de síntese, que inclui subordinação, sintetização, hegemonia, superioridade.

Quanto à resistência, esse é um conceito que para mim não funciona como palavra mágica, porque há vários processos diferenciados de lutas sociais, assim como foram vários os povos africanos que vieram para o Brasil e para a América — tapas, jejes e bantos. Várias nações africanas, no sentido de nação definido por Vivaldo Costa Lima, que prefiro, por ser mais baiano do que o conceito de etnia.

Essas várias nações que compõem o povo afro-brasileiro produziram várias manifestações políticas e sociais de rebeldia, de tentativa de superação do "esquemão" conservador da plantation, do engenho do açúcar, da escravidão, do Império, quer dizer, do círculo de ferro que define o Brasil Colonial e Imperial, contra o qual esses povos se colocaram. Então, é muito mais do que a questão da resistência como um processo único e contínuo.

Não há, por exemplo, uma continuidade no processo de resistência de Palmares que supostamente persistiria até hoje. Pelo contrário, esse é um processo descontínuo, de vários movimentos, de ângulos diferentes. Os quilombos eram variados entre si no tempo e no espaço, na sua inserção na sociedade e nas mensagens que traziam. Existiam federações de quilombos como Palmares, mas também pequenos quilombos em beira de fazendas, quilombos urbanos, mocambos. Havia quilombos de todo tipo, a tal ponto que, na Bahia, ao se realizar um levantamento no governo Waldir Pires, localizaram-se mais de mil comunidades rurais remanescentes de quilombos.

Além dos quilombos, havia as revoltas urbanas e os levantes, as insurreições negras. Fora as insurreições mais conhecidas, como a dos Malês, todo o ciclo nagô, entre 1807 a 1835, também as revoltas populares que foram, predominantemente, negras, crioulas, brasileiras. Se voltamos aos Alfaiates, à independência da Bahia, vemos que foram movimentos predominantemente negros.

Enfim, eu acho que é essa diversidade que não forma uma coisa única, sincrética, chamada resistência, mas expressa ação política e social dos povos da diáspora em prol de sua liberdade.

Qual é a leitura diferente disso? É a de recuperar, como historiador, essa multiplicidade de movimentos, de ações, de utopias, de sonhos e de projetos, recuperar o seu fundamental — duramente reprimido pela escravidão e reprimido pelo racismo contemporâneo — que é a unidade do povo brasileiro. Povo que reagia às condições adversas, à escravidão e ao sofrimento, buscando saídas positivas, seja através de quilombos, pela reforma social, pela transformação radical da sociedade, pela participação de movimentos juntamente com brancos. Para mim, em termos políticos e práticos, é isso que a gente deve retomar: a cidadania negra, o negro cidadão e não apenas o negro rebelde que ainda hoje é diferenciado, o cidadão brasileiro negro como cidadão político participativo e com uma tradição política ativa.

Você não pode admitir o mesmo tipo de comportamento do negro remanescente do quilombo com o do negro classe média que freqüenta o ensaio do Olodum. Existem aí vários comportamentos políticos diferenciados. Tentar criar um símbolo unificado de rebeldia é criar um símbolo quase no limite do banditismo, visto que existiram algumas formas de rebelião que, pelo seu radicalismo outsider, chegaram ao nível do banditismo.

Como se entender a questão do morro no Rio de Janeiro? Ela é o resultado de uma explosão social? Essa forma limite de pessoas que foram excluídas, e que realizam o que o próprio exército chamou de guerrilha não-ideológica, é uma posição que bate com a de todo negro? Não estou vendo ninguém com arma na mão. Não estou vendo ninguém resistindo armado ao racismo do capitalismo. Estou vendo todo mundo fazer política e isso é mau? Não, isso é bom.

A grande questão é que você não pode reduzir tudo a um formato só, a uma continuidade histórica, a uma trajetória única, mas tentar retomar, de uma maneira bastante intensa e apaixonada, todas as diferenças e todas as diversidades, porque é na diversidade que emerge a capacidade desses povos que chamamos de nossos antepassados, de buscar saídas diferentes e não ficar fechado no modelito. Zumbi não é nada, nem é tudo. É Zumbi. E Gangazumba? E João Jorge? E Benedita da Silva? Cada um luta dentro das suas condições. Não se pode dizer que existe a resistência, definindo resistência de maneira stalinista, como movimento fechado, com uma direção, com objetivo único, planificado, de forma que quem está dentro é um irmão e quem está fora é o inimigo. Esta é uma tendência de algumas pessoas que definem o "bom" negro: o que freqüenta a religião afro-brasileira, que se identifica pela tradição nagô, que reconhece o grupo de liderança que vai no Ilê Ayê. Fora desse modelito, todos os demais são apenas pretos. Qual é o discurso negro forte na Bahia hoje? Nenhum! Quem é o líder vibrante da negritude baiana hoje? Ninguém! Nem mesmo verbalmente você tem, hoje, Zumbi.

OC-H - Você considera que o objetivo político do combate ao racismo foi atingido pelo documentário?

UC - Eu acredito que foi atingido sim. O momento em que ele foi feito e divulgado na Europa — 1992 — coincidiu com uma conjuntura internacional e, especialmente, européia, de ascensão do racismo, de depreciação de todos os povos que não são os nacionais dos países hegemônicos e ricos. Isso ocorreu inclusive na Espanha, onde se referiam aos sul-americanos como "sudacas", expressão depreciativa de quem trabalha como mão-de-obra desqualificada, fenômeno parecido ao que ocorre na França com os árabes e na Alemanha com os turcos.

Enfim, no mundo capitalista, cada vez mais excludente e mais racista, as razões da exclusão terminam sempre se justificando por critérios ideológicos, culturais, político-nacionalistas e, evidentemente, raciais.

Existem outras formas de viver, como a nossa, por exemplo, e somos felizes. O incrível é que o documentário atingiu as pessoas simples, esses imigrantes da Europa, que são vítimas do racismo, que passaram a ver de uma maneira diferente um grande país como o Brasil, apresentado como país diferente, autônomo e independente. É isso que compensa o esforço, tanto em termos do trabalho universitário e pedagógico como em termos culturais brasileiros e internacionais. É você enfrentar o racismo no terreno onde ele é mais forte, na área reservada da produção cultural, na imagem, na representação simbólica.

Fonte: http://www.oolhodahistoria.ufba.br/01metiss.html

Ubiratan Castro para sempre


Video completo: http://www.irdeb.ba.gov.br/tve/catalogo/media/view/4055







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